Fonte da ilustração:
https://www.jw.org/pt/publicacoes/revistas/wp20131201/sobre-volta-de-cristo/
ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ.
– Filipenses 2:6, WH; B.
“Quem em forma de Deus existindo, não um ato de
arrebatar considerou o ser igual a Deus.” – WH.
“Quem em uma forma de Deus sendo [ou estando], não
uma usurpação meditou o ser igual a Deus.” – ED.
As traduções acima do texto grego dão a entender
que Cristo não considerou como sendo uma usurpação “ser igual a Deus”. Contudo,
vale lembrar que o grego antigo era escrito sem pontuação, que os tradutores
têm de suprir ao verter o texto para outras línguas. Foram catalogados 274
manuscritos com letras unciais, ou seja, escritos inteiramente em grandes
letras maiúsculas, com quase nenhuma separação entre as palavras, sem
pontuação, datando dos séculos 4.° ao 10 EC. E conforme a pontuação colocada, o
texto muda radicalmente de sentido.
Assim, o texto de Filipenses 2:6 poderia ser
vertido assim: “Quem em forma de Deus existindo, não uma usurpação considerou:
o ser igual a Deus.” Ou ainda: “Quem em forma de Deus existindo, não uma
usurpação considerou – o ser igual a Deus.” Basta colocar dois pontos ou um
travessão para dar a entender que Cristo considerou ser uma
usurpação “ser igual a Deus” e, por isso, não deu consideração, ou atenção, a
essa usurpação.
A expressão “não uma usurpação considerou” pode ter
tanto o sentido de ‘não considerou ser uma usurpação’ como ‘não deu
consideração a uma usurpação’. Visto que o verbo “considerar”, entre outras
coisas, é definido como “levar em conta”, “dar importância a”, esta última
versão do texto significaria que Jesus não levou em conta ou não deu
importância a uma usurpação – a de “ser igual a Deus”. A palavra grega para
“considerar” no texto é ἡγέομαι (hegéomai). Essa palavra
também significa “pensar em” (G.D.), ‘julgar’, ‘ter por’, ‘prezar’ (Taylor).
Observe a diferença entre verter a frase por “não uma usurpação julgou” e
vertê-la por “não uma usurpação prezou”. Ainda poderíamos vertê-la por “não pensou
em uma usurpação”, quer dizer, nem passou pela mente de Cristo a
usurpação de “ser igual a Deus”.
Outro fator a se considerar é que, na expressão οὐχ ἁρπαγμὸν ἡγήσατο (oukh
harpagmòn hegésato), literalmente “não uma usurpação considerou”, notamos a
ausência do advérbio ώς (hos), que atua como uma partícula
comparativa, significando “como”, “igual a”, e que seria determinativo no texto
em questão. (Veja o uso desse advérbio em Filipenses 2:15 e em João 1:32)
Teríamos então a frase “não como uma usurpação considerou o
ser igual a Deus” (οὐχ ώς ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ; oukh
hos harpagmòn hegésato tò eînai ísa theõi) Contudo, a ausência do advérbio hos também
deixa margem para as duas traduções.
Portanto, assim como em outros casos, a tradução
correta tem de ser determinada pelo contexto da Bíblia como um todo. Então, que
ideia concorda com o contexto? O contexto dos versículos circundantes
(3-5, 7, 8) esclarece como o versículo 6 deve ser entendido.
O versículo 3 destaca a “humildade mental” e
apresenta como prova de tal humildade duas coisas: ‘Considerar os outros
superiores’ e ‘visar, em interesse pessoal, também os assuntos dos
outros’. A seguir, o versículo 5 introduz a pessoa de Cristo como sendo
notável exemplo dessa atitude, dizendo: “Mantende em vós esta atitude mental
que houve também em Cristo Jesus”. O texto aconselha os cristãos a imitar a
Cristo no assunto considerado aqui.
Agora, poderiam os cristãos ser instados a não
considerar o “ser igual a Deus” como “uma usurpação”, mas como um direito que
lhes cabe? Não, isso seria exatamente o contrário do argumento que estava sendo
apresentado! Mas os cristãos podem imitar aquele que “não deu consideração a
uma usurpação, a saber, que devesse ser igual a Deus”. Aliás, quem disse
que alguém poderia ser ‘igual a Deus’ foi Satanás. – Gênesis 3:5.
Além do mais, se Jesus não considerasse como uma
usurpação ser igual a Deus, os dois versículos seguintes não fariam sentido.
Estes dizem: “Não, mas ele se esvaziou e assumiu a forma de escravo, vindo a
ser na semelhança dos homens. Mais do que isso, quando se achou na feição de
homem, humilhou-se e tornou-se obediente até à morte, sim, morte numa estaca de
tortura.” (Filipenses 2:7, 8) Se Cristo não achasse errado ser igual a Deus,
ele teria aceitado tal condição, ao invés de humilhar-se. Mas o que o texto
está apresentando é uma antítese, um contraste: Jesus, devido à sua humildade
mental, rejeitou qualquer aspiração a ser igual a Deus, considerando isso uma
usurpação, mas, ao contrário, ‘humilhou-se até à morte’.
Em vista de tais argumentados biblicamente
documentados, alguns tradutores, percebendo que a versão “achou não ser roubo
ser igual a Deus” (católica Douay) e “não julgou como usurpação o
ser igual a Deus” (ALA) soam desconcertantes, por não se harmonizarem
com o contexto, propuseram versões tais como “não considerou o ser igual a Deus
coisa a que se devia aferrar” (IBB). Eles mudam o sentido da palavra, de
‘usurpar’ ou ‘arrebatar violentamente’, para “aferrar-se”. Com base em tais
traduções, alguns afirmam que o texto bíblico significa que Jesus já tinha
igualdade, mas não desejava retê-la, ou ‘aferrar-se’ a ela.
A palavra grega que tem sido alvo desse debate é a
palavra harpagmós, que só ocorre em Filipenses 2:6, e que está
relacionada ao verbo ‘arpazw (harpázo). Assim, para entendermos o
pleno sentido desse aspecto do texto grego, precisamos examinar de perto o
verbo ἁρπάζω (harpázo). Esse verbo significa “roubar,
carregar, apanhar, arrebatar” (G.D.), e também ‘tomar à força’, ‘tirar’.
(Taylor) Observe os exemplos abaixo do uso do verbo harpázo.
Mateus 13:19: “Vem o iníquo e arrebata.”
(ἁρπάζει; harpázei).
João 10:12: “O lobo as [ovelhas] arrebata.”
(ἁρπάζει; harpázei).
João 10:28: “Ninguém as arrebatará.” (ἁρπάσει; harpásei).
Atos 27:15: “O barco foi apanhado com
violência.” συναρπασθέντος; synarpasthéntos). Essa é uma
declinação de συναρπάζω (synarpázo), que significa “pegar
violentamente, agarrar, arrebatar”. (G.D.) Ocorre também em Lucas 8:29;
Atos 6:12; 19:29. Esses textos falam de um homem ser ‘mantido agarrado’ (συνηρπάκει; synerpákei)
por um demônio, de um punhado de judeus ‘tomarem Estêvão à
força’ (συνήρπασαν; synérpasan), e de os cristãos ‘Gaio e
Aristarco, macedônios, companheiros de viagem de Paulo, ‘terem sido arrastados’ (συναρπάσαντες ; synarpásantes)
pelo povo idólatra de Éfeso.
De modo similar, o substantivo relacionado ἅrpax
(hárpax) tem o sentido de “ladrão, estelionatário” (G.D.) e
“roubador” (Taylor). Seu plural (ἅρπαγες; hárpages) tem sido
traduzido por “vorazes” e “extorsores”. (Mateus 7:15; Lucas 18:11; 1 Coríntios
5:10; 6:10) Mesmo os textos em que o ato de ‘arrebatar’ tem um aspecto
positivo, ainda assim descrevem uma ação brusca, impetuosa, que envolve esforço
vigoroso. – Mateus 12:29; Judas 23; Atos 8:39; 2 Coríntios 12:2, 4; Apocalipse
12:5; Mateus 11:12.
Em vista do claro sentido de harpázo,
Ralph Martin, em The Epistle of Paul to the Philippians
(A Epístola de Paulo aos
Filipenses), diz a respeito do grego original: “É questionável, porém, se
o sentido do verbo [harpázo] pode desviar de seu sentido real de
‘usurpar’, ‘arrebatar violentamente’, para o de ‘reter com firmeza’.” The Expositor’s Greek Testament (Testamento
Grego do Expositor) diz também: “Não encontramos passagem alguma em que αρπάζω
[har-pá-zo] ou qualquer palavra derivada dela [incluindo har·pag·món],
tenha o sentido de ‘ter posse’, ‘reter’. Parece invariavelmente significar ‘usurpar’, ‘arrebatar violentamente’. Assim,
não é permissível desviar o verdadeiro sentido de ‘apossar-se de’ para o sentido
totalmente diferente de ‘reter’ [ou ‘apegar-se’].” — (Grand Rapids, Mich.,
EUA; 1967), editado por W. Robertson Nicoll, Vol. III, pp. 436, 437.[1]
Do acima fica evidente que os tradutores de algumas
versões violam as regras para apoiar objetivos trinitaristas.
Ademais, a tradução trinitarista que defende que
Cristo não considerou ser uma usurpação “ser igual a Deus” choca-se
frontalmente com Filipenses 2:9. Pois, se Cristo é igual a Deus, como então
Deus poderia enaltecer Jesus a uma posição superior, sendo que não há posição
superior a de Deus? Ele só poderia ter recebido uma “posição superior” a que
ele tinha na sua existência pré-humana se ele não fosse “igual a Deus”.
Também, o texto não diz respeito a uma posição
superior em relação à sua situação terrestre, pois não seria nenhum prêmio ele
voltar a ter a mesma posição que detinha no céu antes de vir à Terra e
sacrificar-se. O argumento apresentado por Paulo é o de que a humildade resulta
em glória, em bênçãos, evidentemente superiores à que a pessoa já tinha, senão
não seria nenhum prêmio. (Veja Provérbios 15:33; 22:4) Ademais, o Deus
Todo-Poderoso, Jeová, sempre teve poder supremo. Sua posição nunca mudou. Isso
é mais uma confirmação de que Cristo não é “igual a Deus”.
Seguem abaixo traduções que se esforçam em
conservar o verdadeiro sentido do texto grego, de que Jesus não deu lugar à
usurpação de ser igual a Deus. [2]
1869: “o qual, sendo em forma de Deus, não achou
que ter igualdade com Deus fosse algo de que devesse apossar-se.” – The New Testament, de
G. R. Noyes.
1965: “Ele — realmente de natureza divina!
— nunca se fez, com auto-confiança, igual a Deus.” Das Neue Testament, edição
revisada, de Friedrich Pfäfflin.
1968: “o qual, embora sendo em forma de Deus, não
achou que ser igual a Deus fosse algo do que gananciosamente se apoderar.” La Bibbia Concordata.
1970: “Ele não julgou que a igualdade com Deus
fosse algo de que se devia apoderar.” Nova Bíblia Americana, edição
católica inglesa.
1973: “Ele sempre teve a mesma natureza de Deus,
mas não tentou ser, pela força, igual a Deus.” A Bíblia na Linguagem de Hoje.
1985: “O qual, sendo em forma de Deus, não achou
que a igualdade com Deus fosse algo do que se apossar.” The New Jerusalem Bible.
1986: “o qual, embora existisse em forma de Deus,
não deu consideração a uma usurpação, a saber, que devesse ser igual a Deus.” Tradução do Novo Mundo.
Também transmitem a mesma ideia The New English Bible,
de1970 (NEB), a Revised Standard Version
(RSV), segunda edição, de1971, e a Good News Bible — Today’s English Version,
de 1976 (TEV).
Referências:
ALA –
Tradução Almeida Revista e Atualizada no Brasil.
B – Ms.
Vaticano 1209, gr., quarto séc. EC, Cidade do Vaticano, Roma, E.H., E.G.
Brochura Deve-se
Crer na Trindade? (1989, p. 25), publicada pelas Testemunhas de Jeová.
ED – The Emphatic Diaglott (interlinear
grego-inglês), de Benjamin Wilson, Nova Iorque, 1864, reimpressão pela Watch
Tower Bible and Tract Society, Brooklyn, 1942.
G.D. – Léxico do Novo Testamento Grego/Português, de Gingrich e
Danker, Edições Vida Nova, 1993.
IBB –
Tradução Almeida da Imprensa Bíblica Brasileira.
Taylor – Dicionário do Novo Testamento Grego, de
William Carey Taylor, 9.ª ed., Rio de Janeiro, JUERP, 1991.
WH –The New Testament in the Original Greek, de
Westcott e Hort, ed. de 1948 (reimpresso em The Kingdom Interlinear Translation of the Greek Scriptures (A
Tradução Interlinear do Reino das Escrituras Gregas, 1969, publicada pelas
Testemunhas de Jeová).
Notas:
[1] Apud brochura Deve-se Crer na
Trindade? (1989, p. 25), publicada
pelas Testemunhas de Jeová.
[2] Apud id.
A
menos que haja uma indicação, todas as citações bíblicas são da Tradução do
Novo Mundo das Escrituras Sagradas, publicada
pelas Testemunhas de Jeová.
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