João 1:1, texto uncial
Em 1933, Ernest Cadman Colwell propôs o que
ele chamou de “regra definitiva para o uso do artigo definido no Novo
Testamento grego”[1].
Sua regra afirma: “Um predicativo nominativo substantivo anartro não possui
artigo quando precede o verbo.” Nesta série de artigos, essa construção será
referida pela sigla PNAPV (predicativo nominativo
anartro precedendo o verbo).
Em seu estudo sobre o tema, ele
considerou João 1:1.
A parte final desse versículo reza
literalmente no texto grego:
“E DEUS ERA A PALAVRA [ou: O
VERBO].”
Kaì theós en ho lógos.
Observe que não ocorre o
artigo definido (ho) antes de theós (“DEUS”).
A regra de Colwell afirma:
“Um definido predicado
nominativo [theós (“DEUS”), em João
1:1c tem o artigo [“O”] quando segue o verbo; não tem o artigo quando precede o verbo.”
Em razão dessa fórmula, diversos
trinitaristas passaram a lançar críticas amargas às traduções da parte final de
João 1:1 que vertem “a Palavra era deus”, ou “a Palavra era um deus”. Em
especial a Tradução do Novo Mundo ficou
sob ataque ferrenho.
Como mostrado acima, a cláusula
joanina reza no texto grego:
kaì theós én ho lógos
E
deus era a palavra (ou “o verbo”)
Nessa frase, a palavra theós (“DEUS”) é um substantivo anartro
(sem artigo), está no caso Nominativo, é um predicativo e precede o verbo “era”.[2]
Com base nessas características gramaticais mencionadas na regra de Colwell, os
trinitaristas concluíram apressadamente que theós
nessa frase não precisa de artigo para ser definido.
Concluíram que, pela
regra de Colwell, o artigo já estava subentendido, tendo o sentido de ‘o Verbo
era [o] Deus’, jamais admitindo a tradução de theós como indefinido (“um deus”) ou qualitativo (“divino”). Mas é
isso mesmo que a regra de Colwell demonstra?
As limitações da gramática
O próprio Colwell afirmou sobre
sua regra: “[O substantivo] é indefinido nessa colocação apenas quando o
contexto o exige.” Por que ele fez tal afirmação?
Porque há coisas que a gramática
consegue determinar, como, por exemplo, se uma palavra é um substantivo, se é
anartro, se está no caso nominativo e se é um predicado. Porém, A GRAMÁTICA NÃO
CONSEGUE DETERMINAR SE UM SUBSTANTIVO ANARTRO É DEFINIDO OU NÃO. A definição ou
indefinição, ou a qualitatividade de um substantivo anartro depende do contexto.
vejamos dois exemplos do texto grego
neotestamentário que corroboram isso.
João 4:19: “A
mulher [samaritana] lhe disse [a Jesus]: ‘Percebo que tu és profeta.’”
A parte final – “tú és
profeta” – encontra-se assim no texto grego:
Profetes eî sú
Profeta és tu
The Kingdom Interlinear (Interlinear do Reino)
A palavra profétes é um substantivo anartro, está
no caso nominativo, é um predicativo e precede o verbo. Mas é definido?
Se fosse, isso significaria
que o artigo estaria subentendido, a frase tendo o sentido de ‘percebo que tu
és [o] Profeta’. Para os contemporâneos de Jesus, a expressão “o Profeta” não
significava qualquer profeta, mas o esperado profeta semelhante a Moisés,
conforme os textos abaixo:
Deuteronômio 18:15: “Jeová,
seu Deus, fará surgir para você, dentre os seus irmãos, um profeta semelhante a mim; vocês devem escutá-lo.”
João 6:14, 15: “Quando
o povo viu o sinal que ele [Jesus] realizou, começaram a dizer: ‘Este é realmente o Profeta que devia vir
ao mundo.’ 15 Então
Jesus, sabendo que estavam para vir pegá-lo a fim de fazê-lo rei, retirou-se novamente para o monte, sozinho.”
João 7:40: “Alguns
da multidão que ouviram essas palavras começaram a dizer: ‘Este é realmente o Profeta.’”
Atos 3:22: “Realmente
Moisés disse: ‘Jeová, seu Deus, fará surgir para vocês, dentre os seus irmãos,
um profeta semelhante a mim. Escutem
tudo que ele lhes disser.’”
Era isso que a samaritana
pensava naquele momento de Jesus? Ou entendia que ele era um profeta entre os
tantos que já haviam existido? Bem, o que a levou a pensar que Jesus era
profeta? O fato de ele revelar algo da vida dela que ela não havia dito.
Observe o teor da conversa:
“Disse-lhe Jesus: Vai, chama o teu
marido, e vem cá. A mulher respondeu, e disse: Não tenho marido. Disse-lhe
Jesus: Disseste bem: Não tenho marido; porque tiveste cinco maridos, e o que
agora tens não é teu marido; isto disseste com verdade. Disse-lhe a mulher: Senhor, vejo que és profeta.” – Almeida Corrigida e Revisada Fiel.
A informação que Jesus
forneceu fornecia base para a samaritana acreditar que ele era um profeta, mas não
seria o suficiente para convencê-la de que ele era O Profeta. Alguns entendiam
naquele tempo que esse O Profeta era o próprio Cristo. Mas a samaritana, embora
vislumbrasse a possibilidade de Jesus ser o Messias, ou Cristo, mostrou dúvidas
sobre isso. Pois, posteriormente a essa conversa com Jesus, ela falou dele aos
seus conterrâneos: “Venham ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Será que ele não é o Cristo?” – João
4:29.
Em razão de o contexto indicar que
esse nominativo predicativo substantivo anartro que precede o verbo não é
definido, diversas traduções utilizam em português o pronome indefinido “um”
antes desse substantivo.
Outro exemplo – este sendo
conclusivo – é o texto de João 6:70, onde lemos:
ἐξ ὑμῶν εἷς διάβολός ἐστιν
ex hymõn heis
diábolos estin
de vós um mentiroso é
A palavra para “mentiroso” nesse
texto é diábolos. Assim, há traduções
que transliteram esse substantivo, vertendo assim o texto:
“Um de vós é diabo.” – Almeida da Imprensa Bíblica Brasileira.
Nessa passagem, no texto grego, a
palavra diábolos é um predicativo
nominativo substantivo anartro que precede o verbo [PNAPV].
Nessa frase, a palavra “um” é
numeral. O sujeito da oração é “de vós um” ou “um de vós”, e o predicado é o
substantivo anartro “diabo”. Se tal substantivo fosse definido, isso
significaria que Jesus estava dizendo que Judas Iscariotes era O Diabo – o anjo
que se tornou tal! Mas isso não poderia ser, uma vez que tanto Judas como tal
anjo decaído existiam ao mesmo tempo como seres distintos. Tanto que a Bíblia
diz que, num dado momento, “Satanás entrou nele [em Judas]”. (João 13:27) É
óbvio que o substantivo anartro diábolos (“diabo”)
em João 6:70 não é definido. Apenas destaca uma categoria de pessoas: os
caluniadores, ou mentirosos, mas não identifica Judas como sendo O Diabo, ou Satanás.
Seguem abaixo outros exemplos de
PNAPV:
Marcos 6:49; 11:32; João
8:44; 9:17; 10:1, 13, 33; 12:6.
Diante do exposto acima, podemos
perguntar:
Afinal, o que a regra de Colwell prova? Qual a sua utilidade?
Isso será respondido no próximo
artigo.
Notas:
[1] Artigo publicado no Journal of Biblical Literature (Jornal de Literatura Bíblica), intitulado: “Regra Definitiva Para o Uso do Artigo no Novo Testamento Grego”.
[2] Para entender sobre como se determina o Caso e a predicatividade numa frase, veja o vídeo “Uma consideração sobre João 1:1: Quem é o Verbo realmente?”
A menos que haja uma indicação, todas as
citações bíblicas são da Tradução do Novo Mundo da Bíblia Sagrada, publicada pelas Testemunhas de
Jeová.
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