Este artigo será dividido em duas partes.
A PARTE 1 buscará evidenciar o monopólio da produção de “alimento espiritual” por parte do Corpo Governante e quais são as consequências geradas na vida de cada cristão por meio deste modo de ensino.
A PARTE 2 fará uma análise pormenorizada de algumas características do modo simplificado de ensino adotado atualmente pelo Corpo Governante e os efeitos de tal infantilização.
Poucos elementos ou conceitos se fazem tão presentes na vida espiritual e no cotidiano de toda Testemunha de Jeová em conexão com a Sociedade Torre de Vigia (TJ-STV) do que “alimento espiritual”. A realidade é que sempre que uma TJ-STV assiste ao Broadcasting ou qualquer outro vídeo produzido por esta organização religiosa, ou mesmo quando prepara o estudo de A Sentinela e a reunião de meio de semana, há em mente uma única ideia: “Este é o alimento espiritual dado pelo Escravo Fiel e Prudente, vindo diretamente de Jeová”. Recentemente, conversando com um irmão em minha congregação, ouvi as seguintes palavras: “Sinceramente, eu não estudo mais a Bíblia por conta. O que o Corpo Governante fala, pra mim, já está bom, é o suficiente”. Acredito que este irmão não se apercebe do que essas palavras realmente significam na prática sobre sua condição espiritual. Apesar da possibilidade de nem toda TJ-STV expressar exatamente as mesmas palavras já citadas conscientemente, é incontestável que elas representam de modo geral o estado espiritual no qual muitos e, temo dizer, a imensa maioria dos irmãos desta fraternidade encontram-se atualmente: Em total dependência do Corpo Governante e do material bíblico produzido por estes homens.
Apesar de não concordar com a aplicação hoje feita com relação às palavras “alimento espiritual”, fazendo sempre referência ao conceito distorcido da parábola do escravo fiel, procurarei usar estes termos para melhor compreensão da crítica e exposição aqui feitos.
Trata-se de uma realidade inegável de que o chamado “alimento espiritual” - entendido pelas Testemunhas de Jeová em conexão com a Sociedade Torre de Vigia como todo o material de ensino bíblico produzido pelo Corpo Governante - servido à mesa dos milhões de membros dessa organização religiosa, decaiu drasticamente de qualidade, a tal ponto que até mesmo ferrenhos defensores deste magistério concordam que houve severa mudança no material bíblico que chega às congregações, sendo o estudo profundo e objetivo das Escrituras deixado completamente de lado sob uma falsa premissa de necessidade de simplificação do ensino. Ademais, temos em vigor também a eliminação do elemento profético pela aplicação distorcida do princípio de “não ir além das coisas que estão escritas”. (1 Cor. 14:6). O objetivo deste artigo é trazer luz sobre algumas das consequências inevitáveis do empobrecimento, superficialização e infantilização do ensino hoje praticados pelo Corpo Governante, além do total abandono do elemento profético, sutileza e nuances do texto original das Escrituras na produção de “alimento espiritual”.
O monopólio da produção e distribuição de “alimento espiritual”
A partir da década de 1970, após a instituição do Corpo Governante como magistério de ensino, e ainda mais a partir de 2013 mediante a autoproclamação como “Escravo Fiel e Prudente”, este grupo de homens assumiu a posição e responsabilidade de “alimentar espiritualmente” todos os membros desta fraternidade, com base em uma conveniente interpretação equivocada das palavras de Jesus encontradas em Mateus 25:45-47, na ilustração do escravo fiel e prudente e sua designação de dar “alimento no tempo apropriado” para os domésticos, entendendo este trecho como uma profecia relacionada a um grupo de homens agir como um “escravo” e dar “alimento espiritual” aos que fazem parte da congregação. A Sentinela de 15 de Julho de 2013, no artigo intitulado: “Quem é realmente o escravo fiel e discreto?”, página 22, parágrafo 10, contém a seguinte declaração:
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“Então, quem é o escravo fiel e discreto? O escravo é um pequeno grupo de irmãos ungidos que participam diretamente em preparar e distribuir o alimento espiritual desde 1919. [...] Hoje, esse escravo é o Corpo Governante das Testemunhas de Jeová. Mas note que Jesus disse na ilustração que haveria um “escravo”. Por isso, os irmãos do Corpo Governante tomam as decisões como um grupo.” - O negrito é do artigo; o grifo vermelho é meu.
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O Corpo Governante assumiu e monopolizou toda a autoridade e responsabilidade para com a produção de material bíblico. Agora, dentre toda a congregação cristã na face da terra, o único grupo de homens que poderia produzir e distribuir “alimento espiritual” seria o Corpo Governante. É claro que desde a década de 1970, o Corpo Governante vinha atuando como magistério de ensino; porém, nesta época, o “Escravo Fiel e Prudente” era entendido como todo o corpo de cristãos ungidos na terra inteira, e os membros do Corpo Governante eram tidos apenas como “representantes da classe-escravo”.
A Sentinela de 15 de maio de 2008, no artigo intitulado “A estrutura do Corpo Governante”, declarou:
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“O CORPO GOVERNANTE das Testemunhas de Jeová se compõe de homens dedicados, que são servos ungidos de Deus. Eles atuam como representantes da classe do escravo fiel e discreto, que tem a responsabilidade de prover alimento espiritual e de dar orientação e impulso à obra de pregação do Reino em toda a Terra. — Mat. 24:14, 45-47.” - O grifo é meu.
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Ou seja, como representantes da classe-escravo, teriam maior envolvimento com a produção e distribuição de “alimento espiritual”, porém, não exclusivamente, pois entendia-se que outros que não compunham o Corpo Governante faziam parte deste Escravo Fiel e Prudente, e portanto, estavam também designados a dar “alimento espiritual” aos demais. Porém, em 2013, ninguém mais estava autorizado a produzir e distribuir “alimento espiritual” em qualquer forma para quaisquer membros desta fraternidade e estudantes da Bíblia em geral. Na verdade, tudo o que cada membro desta fraternidade poderia agora fazer seria apenas repetir as mesmas ideias, opiniões e conceitos já estabelecidos de acordo com o entendimento e visão deste grupo sobre as Escrituras. Uma vez entendendo que apenas os que compõem o Corpo Governante fazem parte do “Escravo Fiel e Prudente” e tendo em mente a ideia central de que este grupo de homens teria sido diretamente designado por Cristo, agora os membros desta fraternidade não só pensariam duas vezes antes de produzir e distribuir material bíblico (mesmo que de acordo com os ensinos do Corpo Governante), bem como ainda mais antes de questionar, criticar ou apontar erros na produção de “alimento espiritual” cometidos por este “Escravo”. Ensinar algo diferente e alternativo, então, fora de cogitação. Pois, se o Escravo Fiel e Prudente foi designado por Cristo, e este Escravo é o Corpo Governante como expresso na Sentinela que foi objeto de estudo por todas as congregações no mundo inteiro, então fazer qualquer coisa além de aceitar, repetir e agradecer por este “alimento espiritual” seria o mesmo que rejeitar o próprio Cristo. Esta certamente foi a conclusão à qual muitos irmãos chegaram e isto é algo que, de fato, pouco surpreende. Não é preciso extremo esforço mental de nossas faculdades de raciocínio para perceber que a conclusão a qual todos os membros desta fraternidade chegaram, era exatamente a conclusão que o Corpo Governante desejava que chegassem. Assim, estava montado o pano de fundo para uma decadência sem precedentes na qualidade de ensino e no material bíblico produzido por esta fraternidade desde seus primórdios.
O Corpo Governante e a Subnutrição Espiritual
Não se trata de uma experiência incomum a cada um de nós de que, se passamos longos e frequentes períodos de tempo sem comer, ou mesmo ingerindo os mesmos alimentos ou algo que não é devidamente composto de alimento sólido e variado, com todos os nutrientes que precisamos, nos tornamos mais suscetíveis à doenças e ao enfraquecimento de nosso organismo; algo que pode levar até mesmo à subnutrição, e por fim, à morte, em casos extremos.
Da mesma forma, muitos membros desta fraternidade estão fracos e subnutridos, famintos por alimento espiritual sólido, variado e de boa qualidade. Infelizmente, o Corpo Governante tem mantido milhões de pessoas sob dependência de seu material bíblico e dado a elas como que “leite”, ou uma espécie de “papinha espiritual”, aquilo que damos às crianças recém-nascidas, em vez de alimento sólido. O foco do ensino bíblico deixou de ser objetivo e de ensinar profundamente a Palavra de Deus, e passou a concentrar-se repetitivamente em pontos básicos e subjetivos que já são de conhecimento essencial de todo cristão, puramente baseado em lições morais que apontam sempre para nós mesmos como indivíduos e que naturalmente são relembrados todos os dias por nossa própria conduta e fé como cristãos, além de serem desnecessariamente considerados de forma ostensiva semana após semana, gerando um “alimento espiritual” repetitivo, fraco e superficial, além de pouco ou nada variado.
É claro que aqueles que se achegam à congregação cristã e tem pouco conhecimento e base espiritual, precisam de um certo tipo de “leite” em determinado sentido, por considerarem com zelo e estudo “desde o princípio as coisas elementares das proclamações sagradas de Deus” até estarem aptos ao consumo de alimento sólido, deixando o uso anterior de “leite” para sua nutrição espiritual. (Heb. 5:12). É válido ressaltar como Paulo advertiu os cristãos hebreus em sua carta, de que não deveriam ficar para sempre alimentando-se continuamente de leite, mas deviam buscar alimento sólido e profundo para o fortalecimento de sua fé e justiça. Certamente, pontos básicos e elementares que aprendemos desde o princípio em nosso estudo da Bíblia são importantíssimos e devemos mantê-los em nossa mente e coração, independentemente de qualquer fator. Porém, este “leite” que tomamos devia ser substituído ao longo do tempo, em determinado ponto, pelo alimento sólido, que nos aprofundaria no temor de Deus e em seguir a Cristo. Paulo escreveu:
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“Pois todo aquele que continua a tomar leite desconhece a palavra da justiça, porque é criancinha. Mas o alimento sólido é para as pessoas maduras, para aqueles que pelo uso têm sua capacidade de discernimento treinada para saber distinguir tanto o certo como o errado” - Hebreus 5:13,14.
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Embora o “leite” aqui mencionado por Paulo possivelmente não constitua um paralelo exato com o “alimento espiritual” que chamei anteriormente também de “leite” por se tratar de um alimento comumente dado à crianças recém nascidas, o princípio basilar parece ser o mesmo: Aqueles que poderiam ser cristãos maduros, mas que continuam a tomar leite, desconhecem a palavra da justiça, pois são como criancinhas, e não possuem autonomia de usar sua capacidade de discernimento para saber distinguir tanto o certo como o errado. E isto lhes é impossível pelo fato de que não obtiveram alimento sólido, que é a base pela qual pode-se treinar a capacidade de discernimento e assim tornar-se um cristão maduro. Ou seja, é extremamente difícil ser, agir e tomar decisões como um cristão maduro que utiliza sua capacidade de raciocínio em sua vida cristã, estudo das Escrituras e adoração a Deus se continuamos a depender de um “alimento espiritual” que não é sólido e profundo, mas que apenas traz conceitos básicos dos quais já temos conhecimento vez após vez, de forma repetida, e com resultado inevitável de aprendermos sempre as mesmas lições, ao invés de nos debruçarmos sobre temas profundos, complexos e variados nas Escrituras, com foco primário em Cristo e em Jeová. Não tenho nenhuma objeção ao ensino com foco em lições e outros pontos que poderiam ser definidos como básicos de nossa fé, desde que sejam apresentados dentro de um contexto dinâmico e variado, não simplesmente monótono e repetitivo como o é hoje
Qual é o resultado de milhões de pessoas encontrarem-se hoje nesta condição espiritual de dependência do Corpo Governante e do “alimento espiritual” por ele produzido? Por continuarem a depender desta espécie de “leite” fornecido pelo Corpo Governante, os membros desta fraternidade atrofiaram sua capacidade de discernimento, raciocínio e autonomia de distinguir por si mesmos tanto o certo, como o errado, pelo simples fato de não obterem “alimento espiritual sólido”. A prova mais clara disto é a necessidade que estes milhões de membros desta fraternidade têm de que o Corpo Governante lhes diga o que devem ou não fazer, se isto ou aquilo é ou não permitido a eles como cristãos, em vez de abrirem as Escrituras e distinguirem por si mesmos o que é certo e o que é errado. Infelizmente, tal necessidade proveniente da dependência supracitada faz com que os milhões já mencionados sigam toda e qualquer orientação dada por este grupo de homens, sem nem ao menos avaliar em suas próprias consciências cristãs e nas Escrituras se tais diretrizes estão em harmonia com a vontade de Deus. Não é de admirar que não o façam, pois a falta de alimento sólido parece gerar um efeito de fraqueza em suas consciências como cristãos em tal grau que a pessoa se torna incapaz de utilizar o raciocínio e a análise crítica sincera no Estudo das Escrituras e na tomada de decisões em sua vida cristã. Em termos simples, estão na condição espiritual de criancinhas, necessitando que o Corpo Governante os guie pela mão em cada passo do dia a dia, em vez de guiarem-se pelo Cristo através de um estudo profundo das Escrituras e uma consciência e capacidade de discernimento treinadas.
Na parte 2 deste artigo, falarei mais sobre o modo simplificado e infantilizado de ensino atual e quais são os efeitos deste fast-food espiritual.
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