Fonte: https://etc.usf.edu/clipart
Os dois artigos anteriores
reuniram prova linguística e contextual de que a tradução latina conhecida como
Vulgata verteu de forma incorreta a
passagem de Êxodo 34:29-35, ao traduzir de forma a afirmar que Moisés tinha
“chifres” quando desceu do monte Sinai. Para ler os artigos anteriores desta série clique nos temas abaixo:
Este artigo examinará mais a fundo o
motivo de Jerônimo ter traduzido esse texto de tal forma. E, por último,
examinará os argumentos usados pelos que pretender defender a Vulgata nesta forma de traduzir.
Origem da ideia de chifres
Willibaldo Ruppenthal Neto[1],
graduado em História pela Universidade Federal do Paraná e Bacharel em Teologia
pelas Faculdades Batista do Paraná, Brasil, em sua dissertação de Mestrado do Programa de
Pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), traz à tona
uma possível explicação do porquê Jerônimo teria traduzido qarán por “chifres”. Observe o que Willibaldo escreveu sobre o que
ocorreu antes do tempo de Jerônimo:
…
algumas interpretações posteriores, tanto de vertentes judaicas rabínicas como outras helenísticas, perceberam nestes textos (principalmente Exodo 7:1) uma afirmação da divinização de Moises. […] Mas,
como estas interpretações foram tão longe? Como chegaram a uma interpretação
desse texto tão literal? A explicação para tais afirmações é a conexão
destes textos com outro, muito mais
problemático, de Êxodo 34.29-30. – Negrito acrescentado.
Willibaldo comenta que “a
interpretação de Moisés portando chifres é ‘compartilhada por uma corrente
dentro da tradição judaica’”. O autor da referida dissertação afirma sobre isso:
Nesta
tradição judaica, portanto, de modo muito diferente da perspectiva cristã
tradicional, os chifres possuem um caráter bastante positivo, elevando Moisés,
de modo quase literal – afinal, trata-se
de uma tradição judaica a respeito da subida de Moisés até o céu,
primeiramente indicada por Rimon Kasher.
– Negrito acrescentado.
Mas, qual é a origem dessa
tradição judaica dos “chifres” de Moisés? O então mestrando disserta:
[...] seguindo a indicação de Hugo Gressmann, muitos estudiosos31 entenderam que Moisés teria uma máscara
ritual, muito semelhante às máscaras
das religiões primitivas. Se tais autores estiverem corretos, é bem possível
(e até provável) de se pensar esta máscara tendo chifres.
[…]
Nesta
perspectiva, a aparição dos chifres
(Êx 34.29-30) enquanto máscara teria
relação com o “véu” o qual Moisés passou a usar após o ocorrido, segundo
Êxodo 34.33-35. – Negrito
acrescentado.
Tendo em vista tal possível
contexto histórico, Jerônimo não apenas teria feito um erro linguístico (ao
trocar equivocadamente qaran por qeren), como também teria supostamente
sido influenciado por uma tradição judaica não bíblica. Sobre isso, afirma a
retrocitada dissertação:
A ideia de que haveria
uma referência a chifres brotando da cabeça de Moisés foi seguida por Jerônimo,
que traduziu o termo valendo-se da palavra latina “cornuta”10, o que deixou a interpretação bastante conhecida no
mundo latino. Acontece, porém, que devido à percepção de algumas
divindades pagãs cornudas como demônios, principalmente durante
o cristianismo primitivo (especialmente o
deus Pã)11,
além de uma tradição de conexão
entre Satanás e o bode, que remonta
ao texto de Levítico 1612, pode-se dizer que ter chifres
não é considerado algo bom para
os cristãos. Não foi à toa, portanto, que a
tradução de Jerônimo serviu como
fonte de inspiração para representações de caráter antissemítico ao longo da
história. – Negrito acrescentado.
Conforme mostrou o autor acima, a
tradução de Jerônimo no tocante ao relato de Êxodo 34:29-35, além de relacionar
Moisés com divindades pagãs, também estimulou a ação do antissemitismo, que é o
preconceito contra qualquer pessoa de origem semita (árabes, assírios, judeus
etc.), mas principalmente cometido contra os judeus, em sentido étnico,
religioso ou cultural.
As objeções à tradução de qaran por “resplandecer”
O leitor que trouxe a questão
examinada nesta série de artigos comentou que algumas pessoas objetam à
tradução de quaran por
“resplandecer”, “brilhar”, “reluzir” etc., afirmando que “não há outro texto na
Bíblia em que a palavra Qarán signifique ‘raios’ ou ‘esplendor’”.
Primeiro, não há necessidade de
haver outros usos de uma palavra para determinar seu sentido em uma passagem
bíblica. Isto porque há palavras que ocorrem na Bíblia apenas uma vez. E mesmo
assim, via de regra, é possível entender o sentido dela por meio do contexto.
Assim, é o contexto que deve determinar o sentido de uma palavra.
Além disso, o referido leitor mencionou que os que objetam
ao sentido de qaran como “brilhar”
mencionam que, se Êxodo 34 tivesse o sentido de “brilhar”, a palavra usada
seria chashmal. Contudo, esse
vocábulo também ocorre somente em Ezequiel 1:4, 27; 8:2. De acordo com Léxico Hebraico, Aramaico e
Grego de Strong
esse vocábulo (de referência 2830) é um substantivo masculino “de
derivação incerta”; refere-se a “uma substância brilhante, âmbar ou electro ou bronze (incerto)”.
Não temos outra passagem bíblica para determinar o seu sentido; apenas o
contexto. Isto argumenta contra a afirmação anterior dos perpetradores da
tradução que usa “chifres” para Moisés. Assim como se afirmou que “não há outro
texto na Bíblia em que a palavra Qarán signifique ‘raios’ ou ‘esplendor’”, de
modo semelhante não há outro texto na Bíblia que usa chashmal. Porém, assim como no caso de qaran, o contexto nos ajuda a determinar o sentido de chashmal no livro de Ezequiel.
Outra objeção foi a de que “essas
explicações [de qaran como “reluzir”,
“resplandecer”] não suportam nenhuma análise linguística. Se o autor realmente
quisesse falar sobre luz ou esplendor, ele teria usado a palavra Or (אור), ‘luz’ (Gên. 1:3) ou a
palavra Jashmál (חשמל)
‘esplendor’ (Ezeq. 1:4). Este não é o caso”. Sem querer ofender, mas o fato é
que essa objeção chega a ser infantil. Pois uma palavra pode ter vários
sentidos, sem ser necessário usar uma palavra especifica para cada sentido.
Tendo presente que a Septuaginta usou o verbo doxázo, podemos exemplificar com a
substantivo δόξα (dóxa), que pode
significar “glória” no sentido físico, com a ideia de “brilho, radiância,
esplendor” (Lucas 9:31; Atos 22:11; 1 Coríntios 15:40), como também “glória”
num sentido figurado, de “fama, honra, prestígio”. – João 5:41, 44; 8:54;
12:43; Romanos 3:23; 1 Tessalonicenses 2:6, 20.
E no caso do vocábulo chashmal,
o contexto indica que chashmal não se
refere primariamente ao brilho, e sim a um possível metal que, por
consequência, possui brilho. Por outro lado, o rosto de Moisés não se tornou de
metal reluzente. Logo, não pareceria mesmo apropriado o escritor de Êxodo ter
usado chashmal para descrever a
luminosidade do rosto de Moisés.
Conclusão
As evidências tanto linguísticas quanto contextuais
indicam que a tradução correta de Êxodo 34:29-35 é a que indica que o rosto de
Moisés estava reluzindo, emitindo raios de luz, por ocasião de quando ele
desceu do monte Sinai com as tábuas de pedra do Testemunho.
Nota:
[1] NETO, Willibaldo Ruppenthal. Os chifres de Moisés: um estudo sobre Êxodo 34.29-30. Disponível em: <http://revista.fuv.edu.br/index.php/reflexus/article/viewFile/441/417>.
[1] NETO, Willibaldo Ruppenthal. Os chifres de Moisés: um estudo sobre Êxodo 34.29-30. Disponível em: <http://revista.fuv.edu.br/index.php/reflexus/article/viewFile/441/417>.
Referências:
Atos 22. Bíblia Online. Disponível
em: <https://www.bibliaonline.com.br/acf/atos/22>.
Bible
Lexicons. Old Testament Hebrew Lexical Dictionary. Disponível em: <https://www.studylight.org/lexicons/hebrew/7160.html>.
Bíblia Comentada. Disponível
em: <https://bibliacomentada.com.br/biblia/exodo-capitulo-34-versiculo-29-comentado-por-versiculo.html>.
Bíblia em Hebraico
Transliterado. Disponível em: <http://www.hebraico.pro.br/r/biblia/>.
Chifre
(buzina). Estudo Perspicaz das Escrituras. Volume 1, p. 496. ASSOCIAÇÃO
TORRE DE VIGIA DE BÍBLIAS E TRATADOS. Rodovia SP-141, km 43 Cesário
Lange, SP 18285-901, Brasil.
2830. chashmal. Bible Hub. Disponível em: <https://biblehub.com/hebrew/2830.htm>.
2768. keras. Bible Hub. Disponível em: <https://biblehub.com/greek/2768.htm>.
Êxodo 34:29. Bible Hub. Disponível em: <https://biblehub.com/exodus/34-29.htm>.
______. Bíblia Mensagem de Deus. Disponível em: <https://books.google.com.br/>.
Êxodo 34.
Douay-Rheims. Bíblia Online. Disponível
em: < Disponível em: <https://www.bibliaonline.com.br/dour/ex/34>.
______. Septuaginta. Disponível em: <https://www.academic-bible.com/>.
Léxico Hebraico, Aramaico e
Grego de Strong. © 2002. Sociedade Bíblica do Brasil. SOCIEDADE BÍBLICA DO
BRASIL. Av. Ceci, 706 – Tamboré. Barueri, SP – CEP 06460-120. Cx. Postal 330 –
CEP 06453-970.
Liber Exodus, 34. Bíblia
Católica Online. Disponível em: <https://www.bibliacatolica.com.br/vulgata-latina/liber-exodus/34/#.VHMr-NLF_kU]>.
1391. doxa. Bible Hub. Disponível em: <https://biblehub.com/greek/1391.htm>.
Moisés tinha chifres?????? Flecha Polida. 6 de jun. de 2018. - Teologia. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NZeYf4R-yzk>.
O que é antissemitismo? Brasil
Escola. Disponível
em: <https://brasilescola.uol.com.br/o-que-e/historia/o-que-e-antissemitismo.htm>.
2 Coríntios 3:10. Bible Hub. Disponível
em: <https://biblehub.com/text/2_corinthians/3-10.htm 3799. opsis. Bible Hub. https://biblehub.com/greek/3799.htm>.
2 Coríntios 3:7. The Online Greek Bible. Disponível
em: <http://www.greekbible.com/index.php>.
7160. qaran. Bible Hub. Disponível em: <https://biblehub.com/hebrew/7160.htm>.
______. Lexicon Strong's. Disponível em: <https://www.blueletterbible.org/lang/lexicon/lexicon.cfm?t=asv&strongs=h7160>.
The Latin Vulgate Old
Testament Bible. Disponível em: <http://vulgate.org/ot/exodus_34.htm>.
A
menos que haja uma indicação, todas as citações bíblicas são da Tradução do
Novo Mundo da Bíblia Sagrada, publicada
pelas Testemunhas de Jeová.
Contato: oapologistadaverdade@gmail.com
Os
artigos deste site podem ser citados
ou republicados, desde que seja citada a fonte: o site www.oapologistadaverdade.org
Comentários